sábado, 12 de setembro de 2009

A última aldeia

 
Posted by Picasa


Ao fim da tarde, quando o sol deixa de queimar a terra estéril, Valéria, pontualmente, senta-se no poial da sua porta e remexe nos tempos passados. Amara um homem que não teve e teve um homem que não quis. A esse, que acabou por ser o seu e a quem depois amou, ainda que sem o fogo da paixão, nunca lhe ouvira, nem nas noites mais quentes, pronunciar o nome. Fora, para ele, sempre a “rapariga”.

O pensamento foge-lhe para os tempos de moça. Sonhara tanto e concretizara tão pouco.

Nascera numa família numerosa, numa aldeia que jogava às escondidas no mapa. Do mundo pouco vira e do que vira não lhe recordava já o nome (nunca soubera juntar as letras e tinha os nomes das terras baralhados na memória) mas essa vontade de correr mundo, colara-se-lhe no corpo desde cedo e perseguira-a a vida inteira.

Já casada, tentou deixar-se de devaneios de moça ligeira e livrar-se dela. Misturou-a com a roupa suja e esfregou-a com afinco como se de uma nódoa se tratasse. Em vão. O mais que conseguiu foi fechar a vontade à chave numa caixa de bolos bonita.

Recorda agora os tempos em que o sino da igreja sabia as horas de cor e as anunciava sempre assíduo. As ruínas das casas não eram ruínas mas casas com janelas floridas e gatos ao sol. Os filhos que desejou não vieram e os dos outros foram-se, mas ainda lhes ouvia as gargalhadas. Relembra as vidas e histórias dos vizinhos que depois partiram.

Eles partiram e ela ficou, presa na vida que tem. Afinal este é o único lugar que verdadeiramente lhe pertence. É a última habitante e espera a única coisa a esperar.

A aldeia também espera, sabe que desaparecerá assim que Valéria deixar de ser Valéria e abrir, por fim, a caixa de bolos bonita.

1 comentário:

  1. Eu que nada percebo de devaneios embora em tempos pensasse que sim, nem de caixas de bolos, percebo uma coisita ou outra de homens que têm alergia de certos nomes. Só desses, porque dos outros não entendo nada. Com a evolução dos tempos deixámos de ser a “rapariga” e passámos a ser a kidinha ou a kiduxa. Em locais públicos ou na presença de outros chamam-nos “olha”. Sabem o nosso nome mas não sabem como o pronunciar.
    Este mundo está cheio de Valérias que um belo dia se cansam de esperar, dão um pontapé na vida, abrem a caixa de bolos e desandam.

    (devo estar c a gripe! estou a modos que a delirar...)

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Lembre-se que a vida são dois dias, o carnaval são três e tristezas não pagam dívidas.