segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ainda te lembras?

 
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Lembras-te daquelas tardes que passávamos frente àquele, esvaziado de gente, mar de Novembro?

Lembras-te de estenderes a toalha na areia húmida e, abraçados, nos comovermos com o azul impossível do céu?

Lembras-te do murmurar das ondas e do vento fresco no rosto?

Lembras-te da dança dos nossos próprios passos desenhada na areia?

Lembras-te? Ainda te lembras?

Eu lembro-me. Assim como me lembro ainda do teu cheiro, do livro que líamos juntos e da gaivota sobre ele.

domingo, 30 de agosto de 2009

O verdadeiro macho

Hoje estou saudosista. Já não há homens como antigamente!

Recordo-lhes o bigode farfalhudo, o andar gingão, a camisa desabotoada até meio para aturada observação feminina, tanto do pêlo, como do fio de ouro pendurado na peitaça, a pulseira com o nome gravado e o anel reluzente no dedo. Usavam todos “Old Spice”, o que era excelente porque antes da própria da visão, qualquer mulher sabia já que aí vinha macho.

Na praia era um delírio! Usavam um calção bem coladinho ao corpo, acessório ideal para bom relevo dos seus atributos e, por todo o corpo, balouçavam, ao sabor do vento, verdadeiras florestas tropicais. No braço, demonstrativa do carinho familiar, a eterna tatuagem do coração perfurado pela seta, acompanhado dos dizeres “Amor de mãe”. E ainda, porque esforço de sedução não lhes faltava, assistiamos a verdadeiras danças de pavão frente à fêmea escolhida, traduzidas, poeticamente, por flexões ao ritmo das ondas.

Ao fim do dia, sentavam-se numa esplanada qualquer, bebiam a sua Sagres e cuspiam o mais longe possível a casquinha da pevide ou do tremoço, enquanto cobiçavam, gulosa e descaradamente, a garina mais próxima e lhe atiravam piropos super originais.

Ai que saudades desse tempo. Predicados tais punham, inexoravelmente, uma mulher de cabeça à roda.


 
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sábado, 29 de agosto de 2009

Grande pontaria e outras coisas mais

 
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Sou tia-avó.
Depois de nove meses e quatro dias a garota decidiu, por fim, vir ver as vistas deste novo mundo e isto, no preciso dia em que a sua mamã fazia 22 anos.

E chamam ELES ao sexo feminino o sexo fraco. Apontem-se aqueles que conseguiam pôr esta gorducha cá fora.

Parabéns aos pais babados e, já agora, à tia-avó que esperava ansiosa por este momento.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Uma questão de números

 


Ontem descobri que andava a mentir a toda a gente!

Devo esta descoberta a um encontro miraculoso que tive com um ortopedista.
Após 2 horas de espera, entro, sorridente como convém e munida com um saco de 5 kg cheio de exames e afins.

Depois de 1 hora de conversa em que redescobrimos mazelas e revisitámos exames e palpações, diz-me ele:

- Tem a coluna feita num 8.
- Num 8? Não gosto desse número, digo eu. Pode ser outro?
- O que quiser, desde que seja torto, responde ele.
- Pode ter dois dígitos?, pergunto de novo.
(Já que o caso era grave, achei mais interessante essa maquia).

Seguiram-se as recomendaçoes da praxe, acompanhadas por uma receita de Valium 5.

Já à saída, larga ele esta frase: "Cuidadinho, olhe que a sua coluna tem 60 anos".

60 anos, SESSENTA ANOS, penso eu? Então ando a mentir a toda a gente! Sempre pensei que fosse mais nova, quiçá ainda na casa dos 40.

PS. (sem qualquer conotação política, que não me meto nessas trapalhadas)

A minha vida depois do valium é outra. Já não sei se tenho NADA DE VONTADE OU VONTADE DE NADA, só sei que só durmo.
Boa noite e até amanhã.
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Foto: daqui

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Recados

 
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Disseram-me que tinha um certo jeito para escrever.
Claro que tenho, pois então!

Escrevo, sem dificuldades de maior, cartas, postais, recados no frigorífico e demais relacionados.

Foto: daqui

terça-feira, 25 de agosto de 2009

A streaper

 
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À hora marcada, despe as palavras ao som da vida.

Dependendo da música, umas vezes dança com elas, dá-lhes voltas e voltas, sopra-as e deixa-as cair suavemente como se de veludo fossem.

Outras vezes, morde-as, rasga-as e cospe-as com violência.

Os olhares perdem-se nela e ela vai, lentamente, continuando a despir a alma. No entanto, contra todas as expectativas e sem aviso prévio, segura - com os dedos longos de unhas vermelhas - a última palavra e jamais a solta.

Deixa-lhes sempre água na boca.


Foto: daqui

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A loura

Bernardo era um homem que se queria e achava moderno. Barba rala, alourada, com três dias de crescida (dizia-se que agradava mais às mulheres), olhos castanhos - esvaziados do verde dos de sua mãe, o que muito o tinha desiludido em tempos de adolescente -, cabelo farto e corpo cuidado à custa de muito suor ginasiano.

Como qualquer funcionário que se prezasse, Bernardo passava os tempos mortos do seu emprego a navegar na net. Um dia, entre uma olhadela nos emails e uma página de conteúdo um tanto ou quanto erótico (vista pelo canto do olho, não fosse o diabo tecê-las e o patrão desse de caras) deparou com uma loura maravilhosa.

Tornou-se um vício descobri-la logo pelas manhãs. Adorava os seus olhos cor de mel, a sua expressão meiga, a postura elegante, altura, comprimento das pernas. Enfim, uma fêmea e pêras!

Passou a sonhar com ela e, pouco a pouco, tornou-se uma obsessão. Tinha de a ter. Mas era cara, talvez demasiado cara.

Pensou nisso durante algum tempo, calculou os prós e os contras como bom contabilista que era e, por fim, decidiu-se. Amanhã seria.

No dia marcado, destilando expectativa, levantou-se cedo. Preparou-se o melhor que pôde e que o seu corpo permitia (sim, porque a primeira impressão é demasiado importante para desperdiçar). Já no carro, ligou o GPS - que até comando tinha - como qualquer instrumento moderno feito para homem, digitou a morada prevista e lá foi.

Errou os cálculos horários e quando chegou a casa ainda estava fechada. Tomou um café, fumou um ansioso cigarro (atenção que não é plágio, o Eça dizia “um pensativo cigarro”) e aguardou.

Foi o primeiro cliente, disse ao que vinha e a transacção fez-se.

Depois de uma primeira carícia, levou-a para casa e o amor deu-se.




Nota da autora: a foto da loura segue no post abaixo.

A loura do Bernardo



Golden Retriever
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domingo, 23 de agosto de 2009

Teresa (deve ser lido depois do primeiro "Teresa")


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Com os dias e as noites preenchidas, Teresa,  depois de ter comprado a cama de solteiro e os lençóis de algodão, parece outra. Deixou o Gin Tónico (bebida fina por excelência), arranjou um brasileiro gingão - possuidor orgulhoso de uma cama de casal - e passou a beber caipirinhas. Dos tempos antigos, resta-lhe o charme, o batom vermelho e as red nails.

Ah! Continua a ir ao Ikea.



Foto: Cortesia de uma "Teresa", guerreira sem traumas.

Teresa

 
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Admirada por onde passa, Teresa exala charme. Bonita, veste roupa de estilista de renome, pinta os lábios carnudos e as unhas compridas de vermelho e só usa saltos altos, na tentativa de alongar as suas pernas, já de si flamingulares.

Tudo condiz na sua pessoa, menos o dia e a noite.

À noite, cumprindo um ritual de anos, Teresa despe-se vagarosamente, veste uma camisa de renda vaporosa que escolhe com detalhe, perfuma-se com esmero, ajeita com carinho as duas almofadas e deita-se, deixando-se acariciar pelos lençóis de seda vermelha que usa na sua longa e semi-vazia cama de casal. E Teresa espera.

Espera por alguém que lhe troque o nome, já usado de Teresa, por outro mais suave…
“- Amor”.
Espera por uma carícia no cabelo, um toque no ventre, um beijo. Teresa espera e desespera.
Todas as noites, Teresa, presa na expectativa, espera. Mas o beijo não chega e a pele alheia não promete.

Uma noite Teresa cansou-se de esperar o eternamente adiado.

De manhã, a Teresa que exala charme, levanta-se e vai ao Ikea.
Compra uma cama de solteiro e uns lençóis de algodão (iguais aos que toda a gente usa).

Pelas noites, Teresa tem, agora, a cama cheia. E os seus dias condizem com as noites.


Foto: da net, infelizmente sem fonte atribuída.

sábado, 22 de agosto de 2009

A janela fechada

 
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O homem acorda ao sentir dentro si um revolver intenso, como se algo o chamasse desesperadamente. Já não era a primeira vez que isto lhe sucedia mas sempre ficava assustado. Tentou, infrutiferamente, acalmar-se.

Desta vez a sacudidela interior era mais forte, mais intensa, como se existisse outro ser dentro de si, agora com uma voz nova, mais forte, mais urgente.
Era uma voz feita de longos silêncios. Era uma voz de conflitos. Era a voz do tempo. Era a voz do sonho.

Foi então que voltaram as imagens. Imagens de tempos antigos onde a própria memória se perde. Voltou àquela casa distante da sua infância. Havia vozes que murmuravam atrás das paredes e que o incitavam a escutá-las. Detém-se uns instantes, encolhe-se, pressentindo um perigo já conhecido, enquanto as ouve sussurrando:

- nunca espreites pelas janelaasssssssss… nuncaaa espreiteeessssss. Atrás das janelas está o vento e o vento é um monstro feito de ar que te agarra, te leva e não voltas nunca mais.

Sempre esteve atento aos sons da penumbra, sempre fez o que lhe pediam e nunca, nunca em toda a sua vida, olhou através de uma janela.
Perdeu, assim, o outro lado das coisas.

Agora assaltam-no, entontecendo-o, as recordações do seu primeiro e único amor.
Mais tarde, chegou até a rejeitar o amor.

Um dia viu-a, navegando dentro de um vestido azul, mesmo ao lado de sua casa. Habituaram-se a descobrir-se nas manhãs ensolaradas. Com as primeiras chuvas chegou também o amor. E com o amor, as ameaças de sua mãe. Continuaram a ver-se às escondidas mas foi fugaz essa alegria. Um dia alguém os viu beijando-se no recato de uma sombra e pouco depois já todos sabiam. Como sempre, a ameaça chegou para resolver tudo. Bastou isso para deitar ao chão o incipiente sonho. O sonho foi-se junto com o amor. Tampouco lutou por ele.

Neste momento continua deitado na cama com vontade de morrer. O seu tumulto interior intimida-o e apenas deseja que desapareça.
Não sabe que são os últimos resquícios do sonho esperando por uma janela.
Sempre desconhecerá de que é feito o sonho. Nunca saberá sequer que um dia sonhou olhar através de uma janela. Somente espera pela morte. Sabe que virá e não necessita mais.

Resta saber se, morto, descobriu que nem sequer havia vivido.

"Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar"

 
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Seus olhos subiram do chão até se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou, tapando os olhos. Os restantes se aproximaram de meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria. - Os olhos dele! Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos. A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe para espreitar de longe o preto de olhos da cor do mar.

Mia Couto, excerto "Mar me quer", pág. 37-38

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Pobreza








Foi em um baile de subúrbio que o pintor Abelardo Gomes viu, pela primeira vez, a Cleonices. Com a segurança de vista peculiar aos artistas, compreendeu o que havia de brilho, de graça, e de elegância naquela espada de carne mesmo olhada, assim, através da bainha de seda daquele vestido. Estatura mediana, corpo harmonioso, tinha o busto firme, o pescoço direito e, nos olhos verdes, um mistério de oceano. A boca abria-se-lhe vermelha como um cravo, e a cabeleira abundante, que a sua coquetaria infantil alvoroçava, era como um turbilhão de ouro fervente, que as brisas agitavam.
Impressionado com aquela harmonia de formas, com aquela graça de maneiras, com aquela singeleza de atitudes, o pintor Abelardo pediu, instou, rogou, para que ela fosse ao seu "atelier", dar-lhe o modelo para uma obra imortal.
E ali estava a moça, tão púdica, tão branca, tão linda, diante do artista glorioso! De pé, uma toalha passada em torno do busto, a cabeleira fulva em desalinho elegante, ia fornecendo ao grande mestre o molde, a imagem, para uma grande tela imperecível. O rosto, os cabelos, o pescoço, os braços modelares, haviam sido, já, apanhados pelo desenho. O seio níveo, que pulara, como um pássaro, das dobras da felpa, estava reproduzindo, já, no esboço do quadro maravilhoso. E ia descer a toalha para mostrar o ventre liso, de virgem, quando ficou toda vermelha, como um fruto sazonado de súbito.
— Ah, professor, perdoe! Mas, eu sou pobre!... — gemeu.
Pousando o pincel na paleta, o artista olhou-a, sem compreender. E Cleonices, toda envergonhada, e ainda mais vermelha, cobrindo as faces de rosa com os dois alvos lírios das mãos:

— Eu não tinha mais água oxigenada...


Texto: Humberto de Campos in "Grãos de mostarda!
Imagem: Tímida de Mário Fresco

Julieta (com a janela já fechada)

 
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Julieta à janela

São duas horas da noite, d'uma noite de primavera clara e fresca, e Julieta, encostada no peitoril da janela, espera o amante. Soltos os cabelos, o pescoço estendido, o olhar de quem espreita, estremece ao menor ruído.
Tinha ouvido, já, o rodar de muitos veículos, e, julgando que paravam à porta, sentia bater o coração. Um carro único, piedade cruel do acaso, parou.
— É ele; com certeza que é ele!
Engano. Era o morador do terceiro andar, um homem gordo, cujo nariz, brilhando na escuridão, lembrava uma brasa.
Julieta escutou ainda, atentamente, o ruído de passos no passeio da rua, os quais ressoavam no silêncio do quarteirão deserto e solitário. Mais d'uma vez julgou reconhecê-los; mas, ou era o cocheiro da Companhia que virava a esquina, com o seu chapéu de oleado branco, e que, a pé, se dirigia para casa, de chicote na mão; ou algum bêbado, que caminhava encostado à parede. Zangou-se por fim, bateu o pé, e fechou com ruído a vidraça. Justamente nessa noite trazia o coração cheio de ternura; a primavera tinha-lhe dado bons conselhos, e tencionava encher o amante de felicidade. Sentia vontade de chorar, mas as lágrimas não se viam e avermelhavam as pálpebras sem necessidade. Fechou as portas com violência.
— Não vem? Pois o pior é para ele, quer venha, quer não; já não estou disposta a esperar mais!
Entra para o quarto, desfaz os caracóis, desaperta o colete, põe o livro sobre a mesa da cabeceira ao lado do castiçal, deixa cair as saias, desabotoa as botinas, tira as meias, e, mudando a camisa, mete-se no meio dos lençóis daquele leito frio e deserto, depois de ter estufado o travesseiro, furiosamente, aos murros. Apenas, porém, se deita, ouve o barulho de uma chave a entrar na fechadura, abrir-se uma porta e depois outra... É ele! Julieta, que finge dormir, voltada para a parede, diz, então, consigo, sorrindo:
— É assim mesmo; o melhor meio de fazer chegar um conviva retardatário é, mesmo, pôr o jantar na mesa!

Humberto de Campos in "Grãos de mostarda"

O piano... o piano.

 
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Aquele grupo de senhoras chics possuía, todo ele, idéias originalíssimas sobre a vida e sobre o amor. A maior parte delas reduzia, porém, este sentimento a um certo número de sensações, descendo de uma atmosfera de idealidade ao baixo círculo dos prazeres terrenos. A mais formosa de todas falava, mesmo, assim:

— O amor, meu caro Sr. conselheiro, é uma espécie de música, ligeira ou lenta, suave ou tumultuosa, que o homem tira desse piano de nervos, que é a mulher. Homens há, que são grandes artistas, verdadeiros mestres na arte. Outros, não passam de principiantes, que não ligam, sequer, duas notas.

A dissertação era, como se está vendo, curiosa e inteligente. E foi certa do meu encantamento que a linda senhora continuou:

— Eu sei de homens que são verdadeiros Rossini diante de uma mulher. Delicados de alma e tato, eles tiram delas harmonias embaladoras, sentimentos doces, árias tão ternas que parecem destacadas do coro dos anjos. Outros são wagnerianos: amam com barulho, com tumulto, com uma raiva sonora que, às vezes, rebenta o piano!

— E Vossa Excelência, quais prefere? — indaguei.

— Eu? — atendeu a formosa senhora.

— Eu sou piano de concerto, em que se tem executado tudo: Chopin, Wagner, Saint-Saens, Massenet, Verdi, os mestres, em suma, da escola italiana, da escola francesa, da escola alemã. Homem educado e de sentimentos finos, meu primeiro marido tirou de minh'alma e do meu corpo uma série de harmonias brandas, que me faziam adormecer... O segundo, foi um wagneriano de marca. Era um rapaz brasileiro de trinta e tantos anos, sangue de fogo, temperamento tropical, capaz de tocar a quatro mãos tendo apenas duas.

— E agora?

— Agora estou viúva. O piano está fechado, à espera de outro pianista.

Um sorriso brejeiro deu, nela, sinal aos olhos. Estes incendiaram-se, e eu, que os vi assim, observei:

— E agora, que música seria agradável ao piano dos seus nervos?

— Ao meu piano?

— Sim, senhora.

A linda criatura não tergiversou.

— Um... "jazz-band"! — respondeu.

E estremeceu toda, os olhos semicerrados, como se lhe tivesse corrido um calafrio pela espinha.


Humberto de Campos, in "Grãos de mostarda".

A Água

 
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A Água

Nua como uma comédia da Escola do Bom Senso, mas, sem nenhuma comparação possível, infinitamente mais bela, Jacinta Margarida, os fulvos cabelos desatados, está deitada na sua vasta banheira de pórfiro vermelho, de bordas largas, que pertenceu, diz-se, à desventurada Popéa, e que seu amigo, o conde René de Leufroi, lhe trouxe de Capri, onde a encontrou entre os vinhedos. A linda rapariga brinca numa água transparente e límpida, — pois, em Paris, com muito dinheiro, se encontra até água pura! — e saboreia deliciadamente a frescura tépida, que lhe penetra por todos os poros da pele, admirando a onda suave que a embala, e que a envolve como um véu.

Mas tudo isto é um dado por um tomado; pois a água admira mais ainda o jovem corpo sem mácula que a ela se entrega, e é com amor que lhe acaricia o pescoço flexível, os braços heróicos, o colo níveo, os seios de botões cor de rosa, o ventre polido e direito como o de uma virgem, o torso altivo, as coxas, as pernas de caçadora, os pés de unhas transparentes. E quando a loura Jacinta se levanta a meio e quer chamar Marieta para a tirar do banho, a água freme como se lhe tivessem mergulhado um ferro candente, e, num marulho de tristeza e de saudade, murmura, indistintamente, com uma voz que é um soluço:

— Ainda não, Jacinta!...

Humberto de Campos



Nota: Perdoem-me a falta de alguns elementos cénicos. São apenas pormenores, a verdadeira cena está na imaginação de cada um.

Volando

 
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De la plaza y de las calles de paredes blancas,
de los campos sembrados de trigo,
de la iglesia y los caminos del pueblo,
me he marchado ya.

Quizá veas a una muchacha con mi cara y mi pelo;
quizá creas que me ves llamar a la puerta de mi madre;
te parecerá escuchar mi voz y percibir mis gestos,
pero no seré yo, porque no volveré más.
Me he marchado a volar con las Hadas,
con las Reinas de los cuentos antiguos,
con los Reyes que ganaron lo que una espada puede ganar,
y con los viejos espíritus del bosque.

Dile al padre Robert que no rece por mí en la misa del domingo,
que no mencione mi nombre, que no me llame.
Donde ahora estoy, ya no me alcanzan sus palabras
Puedes preguntar por mí a las garzas y los gorriones,
al aire que murmura entre el ramaje del bosque,
al agua que salta sobre las piedras del arroyo...

Puedes intentar adivinar mi cara
en la última estrella que se oculta antes de amanecer,
pero nunca me llames ni dejes tu ventana entreabierta para mí.

Me he marchado a volar con las hadas
y no volveré más.


Rosalinda

Onde as águias se vêem de costas

 
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Conta a lenda que cerca do ano 870 D.C. um mouro passava pelo local com as suas sete mulheres, a sua cáfila e todos os seus servos, quando deparou com a beleza da serra, a sua vista até onde o olhar alcança e as suas águas frescas. Decidiu pernoitar no ponto mais alto da serra e o lugar, de tão aprazível, cativou-o de tal modo que não mais quis abandonar a serra.
Chamava-se Ibn Marwan, esse Mouro.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Blue rose

 
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O comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:

- A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.

Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração:

- Não conhece, então, a lenda da rosa azul?

À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou:

- No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silencio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.

O comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:

A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma idéia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul.

Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:

- Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, - fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos trémulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!

O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:

- Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.


In A serpente de bronze (a rosa azul II), Humberto de Campos

São rosas, Senhor, são rosas!

 
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A mulher de D. Dinis, a rainha Santa Isabel, tornou-se célebre pela sua imensa bondade. Ocupava o tempo a fazer bem a quantos a rodeavam, visitando e tratando doentes, distribuindo esmolas pelos pobres.
Ora, conta a lenda que o rei, já irritado por ela andar sempre misturada com mendigos, a proibiu de dar mais esmolas. Mas, certo dia, vendo-a sair furtivamente do palácio, foi atrás dela e perguntou o que levava escondido por baixo do manto.
Era pão. Mas ela, aflita por ter desobedecido ao rei, exclamou:
- São rosas, Senhor!
- Rosas, em Janeiro?- duvidou ele.
De olhos baixos, a rainha Santa Isabel abriu o regaço - e o pão tinha-se transformado em rosas, tão lindas como jamais se viu.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Água dentro de água

 
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No dizer dos cientistas, água é H2O. Tudo tão simples: dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio. Bem juntinhos, nas condições ideais de pressão e temperatura. E tal, e tal e pronto. Sem mistérios.
E para os poetas, esses seres que se dedicam a complicar tudo o que é simples, o que é a água?
Sabem lá eles... Nem lhes interessa. Olham-na, escutam-na, molham nela as palavras para que escorram pelos poemas. Mergulham até ao fundo dos lagos sem precisarem de deixar as margens, bebem a chuva sem mexer os lábios, cumprimentam as estrelas espelhadas nos charcos. Muitas vezes, ficam com os olhos rasos de água. É sinal de que lavaram a alma. Com água.


A chuva cai no lago.
Que dirá a água sobre a água?
Cada pingo grava
o centro de muitos círculos
e palavras secretas circulam,
cortam-se, afastam-se,
sobrepõem-se.
Todo o lago é um prado de murmúrios.
Gostas de mim?
Gooosto. Não gosto. Assim assim.
A água contra a água -
a que está e a que chega.
Donde vens?
Do alto, onde fui algodão.
E tu o que tens feito?
Remoinhos, acalmias.
Lutam.
Não me faças transbordar.
Não tenhas medo. Sei da tua medida.
Depois confundem-se, possuem-se.
Lago ou leito?
Água dentro de água.

Lucinda Quitério

Passamos pelas coisas sem as ver

 
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Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade, in "As Tormentas"

O passado é inútil como um trapo

 
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Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus

Eugénio de Andrade in "As tormentas"

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Inquieta solidão

 
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Não sei por que razão o mundo se inquieta
quando estamos sozinhos. Talvez não saiba
que esgotámos os olhos no rigor dos espelhos
e que, por isso, não somos capazes de traçar
um caminho senão para o evitarmos. Na verdade,

se cai a noite, estiolam-se as aventuras entre nós –
o teu silêncio respira longamente, às vezes
paira sobre as dunas do meu corpo a conspirar,
como um tear de nuvens a fiar tempestades
ou um vento salgado a prometer naufrágios;
mas nunca converte o assomo numa história.

Não sei porque se aflige tanto o mundo
se ficamos sozinhos. Talvez ignore
que nós não somos mar de nenhuma praia,
que escolhemos poupar às falésias as cicatrizes
das ondas; e tudo para não aprendermos
o verdadeiro nome das feridas.

Maria do Rosário Pedreira
[in revista Relâmpago, n.º 22, 2008]